sexta-feira, outubro 23, 2009

A Cartomante

Meu nego

Cheguei a um ponto em que te chamar de meu nego me enche de uma estranha felicidade. Uma felicidade tão sincera, pequena e mesquinha como são as felicidades. Chego a banhar-me de ternura, seja ela qual for, ao te escrever meu nego. É que também as poesias têm rareado, tem ficado assim repetidas, de uma maneira feia e carrancuda observando minha mão trêmula. Talvez seja o tempo passando. Talvez seja a loucura cada vez mais se mostrando como amante certa, segura e corrente. Tenho ouvido muitos discos, discos de vinis belíssimos, verdadeiras pérolas perdidas agora e encaixotadas.
Uma vez em Buenos Aires, quando lá trabalhei como hippie envergonhado nos sinais de Boedo, encontrei uma cartomante. Ela trabalhava lá numa galeria em Caballito. Uma galeria sincera e simpática, ares de decadência aristocrática e sinceridade suburbana. Cheguei lá, trêmulo, influenciado por uma amiga que outro dia tinha visitado a tal cartomante. Eu, que não era dado a crenças, a tudo isso, fiquei assim com uma emoção lispectoriana, vontade louca de ver a cartomante, de achar, na minha inocente crença que poderia literaturalizar a pobre cartomante bancando o poeta misterioso. Ledo engano meu. Abri a porta timidamente e fui sentando na salinha para esperar a minha vez. Paguei-lhe os pesos e sentei-me frente a ela que não me estudou com nenhum olhar aguçado. Foi separando as cartinhas, se apresentando brevemente levantando olho nenhum na sua maquiagem argentina. E eu fui me apresentando, falando da minha vida, contando com o fingido interesse da portenha na minha frente. Era o fim da primavera. Sim, o verão se aproximava e eu me sentia tão feliz que até a dor de amor era coisa linda pra se cultivar. Cortei as cartas e ela começou a analisar.
Me disse de algumas coisas, me disse que fortes mudanças viriam. Falou-me de uma mulher mais velha no meu caminho. Falou-me de problemas amorosos inexistentes, falou-me de repetidos chavões que meu lado cético, iluminista, ateu se acendeu contando vitória. Tentei consertar as coisas, perguntar outras coisinhas, mas não deu resultado. Saí de lá envergonhado, frustrado, caminhando a esmo pelo cinismo da Rivadávia. Ao chegar no meu apartamento ao telefone confessei a minha amiga a farsa de tudo isso, minha decepção e a minha resignação ao mundo e a sua realidade.Hoje, meu nego, descobri que talvez não tenha entendido a cartomante argenta em suas colocações, em sua repetição de lugares comuns, de frases batidas e exclamações mentirosas. Quanto a mulher mais velha agora sim já sei quem é, agora sim já vejo e talvez a cortejo de longe, inventando pra mim talvez nova realidade para me embrenhar.
Hoje aqui nesse auge de primavera, pela primeira vez atrevi-me a curtir neo-fossa com o pseudo-bolero La Distancia. Entendi a pequenez de todas as artes, as vergonhas de todas as declarações. Senti talvez o cinismo do próprio cinismo meu que tem freqüentado meus pensamentos. Pensei muito na poesia da Pizarnik e na guerra que acontece a metros de meu apartamentozinho.
Senti-me profundamente triste com vontade sincera de crer em juízo final.
Mas parei por aí.

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