segunda-feira, agosto 24, 2009

pour Elise

As vezes o verão se pintava de forma rara, se punha melancólico, cabisbaixo, sereno e escondia para si a alegria que tinha e todo aquele brilho no olhar que muitos reconheciam. Nesses momentos o que a gente fazia era sacar a tristeza para passear um pouquinho pelo ar sereno e fresco da madrugada e de mãos dadas a gente brincava de maldizer a nossa sorte, aumentando a nossa angústia para mais apertado ser o abraço.

Aquela vaca um dia resolvera chegar cedo bancando a putona trazendo coisas escondidas e promovendo altas coisas que nos deixavam atônitos e com uma puta vontade de mandá-la para o quinto dos infernos.

Mas cadê que fazíamos isso? Era uma vaca apaixonante, diante dela perdíamos todos os nossos julgamentos, juízos, razões, e tudo o mais e ficávamos a escutar a sua voz ou então nos escravizávamos em pequenas ações como providenciar-lhe cigarros ou agrados pequenos.

Pois então um dia a piranha extrapolou e ficou trancada no banheiro da sete da manha até as duas da tarde confabulando algo que os nossos ouvidos atentos não podiam pescar. Ouvíamos susurros e gestos e uma série de coisas que nos mostravam o tamanho da loucura que ela levava na cabeça. Não adiantaram a tentativa de arrombar a porta e os berros incessantes.

- Pois tu não sabes bem que aquela mulher não sabe o que faz?

E eu mandava pro caralho aquelas palavras de razão e reflexão que Antonio me propunha. Ficava assim enfiando palitinho na fechadura chamando ela de escrota vadia filha de uma puta mal parida e tudo o mais. Cheguei até a cozinhar e deixar o prato perto da porta e talvez passar o cheiro da comida pelo buraco da fechadura mas eu nada conseguia ver e ela continuava susurrando um texto famoso e eu sabia que ela estava fazendo aquilo para algum experimento dela e eu não queria bancar o ratinho a cobaia.

Foi então que resolvi barbarizar e promovi o que encarei como uma das coisas mais subversivas da minha existência.

Fui até a cozinha e comecei a cozinhar o mais lindo dos almoços e botei o rádio no máximo volume encerrando-me na minha própria redoma, fazendo o que tinha que realmente fazer, cheguei a tentar alguns passos de dança e picando o alho lhe disse a verdade que fez com que ela saísse do banheiro, olhares atônitos e tristes e desabasse num choro convulsivo na minha frente.

Era tanta lágrimas que a nossa comida pareceu salgada e o bom que depois do choro dava para gente se tocar de forma nova e descobrir novas zonas de carinho e tensão nunca mais descobertas. Meus xingamentos para com ela mudavam de cor e viravam a mais bela das poesias, a mais bela das declarações para a mais bela das mulheres.
Era verdade que Sara era doente.

Pois bem, tudo isto eu estava a saber desde que cheguei por estas terras estranhas. Pois tu bem vês que o tempo está a mudar e as coisas vão terminar.

Ela gostava de ficar lendo Saramago em voz alta e forçando um sotaque que não tinha. Mas saía sim a rabiscar depois alguns poemas que chamava de poema instantâneo, escritos, lidos e jogados na privada.
"A perfeição e a merda escondem as duas uma semelhança e uma relação profundamente intensa que as nossas faculdades humanas não raro poderão saber." dizia ela.

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