segunda-feira, novembro 09, 2009

Letícia

"All night she visited the bars. She wore a hat which she pulled down over her face and, during the course of the entire evening, no one had yet recognized her. She was an anonymous woman with good legs. She was whistled at and propositioned but one glance out of her bleak eyes was quite enough to curb the advances of even the drunkest sailor.

Two o'clock and she was drinking in a bar. She watched a lonely couple dance to the music of the jukebox. She wondered where she was. Probably still on Bourbon Street, but she couldn't tell. All of the bars in the Quarter looked alike to her . . .

But the desired detachment did not come. She was still sober. She decided she would go to another bar - perhaps a change in atmosphere would help her forget, help her to become drunk again."
Katherine Everard



Frustraram planos de praia. Frustraram tantos e tantos planos que hoje o domingo ficou assim, egoísta, permissivo, moralista e um pouco católico. Deu angustiazinha tímida lá do longe, sensação de que as coisas estavam estranhas. “Tá estranho né?” Era justamente o que me dizia Letícia. Independente do lugar e da atmosfera era sempre o signo da estranheza que guiava os seus passos. Eu me contentava em concordar, em me fazer confidente das estranhezas dela. Raras vezes discordava de suas frases e ficava assim, egoísta, de longe, curtindo a cumplicidade ferida sabendo que no fundo sim, eu era o primeiro a acreditar na estranheza do ambiente advogada por Letícia.

Ela era uma mulher interessante. Ainda não quero me deliciar no gozo sem volta, no gozo do eco em descrevê-la num lindo passado. Quero sim desnudar Letícia para que vocês a vejam, a partir de suas vivências, de suas experiências de planos realizados e frustrados.

Quando Letícia morou em Buenos Aires, ela arranjou um emprego de lavadora de pratos num restaurante em Palermo. Seu chefe era gente fina, assim como toda a equipe que trabalhava com ela no abafado ambiente da cozinha. Inclusive fumavam baseado adoidado lá dentro, ao meio dos comentários dos bastidores, dos pratos, dos talheres afoitos que não paravam de chegar à pia sempre cheia em que Letícia dispunha seus pensamentos e os analisava concentrada na tarefa de lavá-los. A droga talvez aumentasse essa sensação de missão, essa completude pequena, mas verdadeira, talvez por isso grande e sincera. Essa missão de lavar a louça custe o que custar, esse sentimento de grandeza que algumas tragadas davam ao seu ser e enchiam a sua vida de sentido.

Letícia me confessou isso com tristeza nos olhos. Estávamos no Brasil, num desconsolo de tarde de novembro, daqueles novembros que sabem ser mais quentes e perversos que janeiro. Mesa de bar, sensação de fim de livro, depressões avizinhando, pedimos itaipavas e fumamos cigarros da Indonésia tentando restaurar parte de um passado que foi lindo e que nos maravilhava. Era muito brilho no olho, era muito o tempo passado, a confissão da cumplicidade, das músicas prediletas, das experiências, das angústias e dos planos. “O tempo passando é o que mais dói” disse-me ela depois de algumas cervejas e alguns olhares mais ternos. O silêncio se fez em nossa mesa. Ao fundo pessoas alegres bebiam e trocavam comentários, brincadeiras e diversões. “Ah, a ilusão da cumplicidade dos bêbados!” Pensei eu, rindo a um certo ponto por muitas vezes ter advogado tal cumplicidade para muitos, inclusive para Letícia. Naquela altura de nossas vidas nem isso mais fazia sentido. Era eu, Letícia, a mesa e os outros. Entre mim e ela uma vírgula, um mundo, um universo. Solidão, sem grana para análises e relacionamentos frustrados, temi por mim mesmo. Sem antes pensar em Letícia que agora buscava amenidades e conversava levianamente sobre a novela das oito, olhei para fora do bar e vi o desconsolo das seis horas da tarde. O sol ainda batia na entrada do bar, era impiedoso. Nenhuma pessoa na rua. “Um desconsolo até bonito”, pensei, ao ouvir Letícia.

A nossa cumplicidade se encontrava justamente nesses momentos. Em que um sustentava o dedo e pedia mais outra cerveja ou pedia mais outro cigarro e começava uma história. Não havia sustentação para os nossos momentos monologais. Tinha sim muito brilho no olho para cada história, para cada confirmação, para cada traço do amigo que se reconhecia, para cada surpresa de uma atitude desaprovada. Eu não desaprovava Letícia. Ficava sim pensando muito na vida dela, em como eu fiquei, nos abandonos de ter ficado no Brasil colhendo sentidos em artigos e traduzindo baboseiras enquanto ela ia se aventurar na Argentina, tão pertinha, tão fácil e acessível em seus cartões postais de lugares lindos e deslumbrantes, cotações de peso para o real tentadoras que Letícia se atrevia a me escrever nos postais com convites para apartamentos e noitadas portenhas com muita gente que ela dizia chique. Letícia ficou bastante tempo na Argentina. A gente se correspondia, é claro. Com solavancos, pausas, suspiros, birras e beicinhos. Cartões apaixonados, secos, sábios, era o que não faltava. Eu já tinha tudo em casa. A praça de Maio em seus variados ângulos, o obelisco que achava horroroso, a avenida Corrientes e até um menos badalado do bairro de Boedo onde as duas esquinas se encontravam num tango que ouvia desde pequeno.


Letícia não gostava de tango e me causava graça vê-la agora gostar, forçar um gosto sincero que com o tempo seria mais verdadeiro que o meu.

Não levei Letícia para o aeroporto. Não levei porque não queria e porque queria muito no fundo sim pegar aquele avião com ela. Ela me disse que chorou um pacífico ao entrar no saguão de embarque e ver ao longe a igreja da Penha. Letícia tinha uma queda sincera pelo Rio, pela festa da Penha em que fora uma vez e ficara deslumbrada. E pelos sambinhas que se ofereciam a ela enquanto crescia o seu sorriso, o seu corpo e o seu desejo de vida. Fiquei imaginando Letícia chorando vendo a Igreja da Penha ao longe em dia nublado e feio de julho. A malinha na mão, ouvindo música e escrevendo na sua agendinha poesias ou comentários inúteis. Ao despedir-me dela por telefone falei-lhe sobre a Rayuela do Cortázar e que ela tinha de ler de qualquer maneira, que ela não tinha que temer os clichês, que eles eram belos e preciosos. É claro que adivinhei ternura da Maga em Letícia e talvez com um medo de criar monstros em meu laboratório pedi para que ela mesmo tirasse as suas conclusões lá, lendo aquele livro destruindo assim minha ilusão. Muito tempo depois, ao encontrar-me com ela no bar, esqueci-me de perguntar se ela lera ou não o livro. No final entendi que sim. E que não achara lá aquela coisa.

Letícia é assim. Quando criança quebrava o pau com todos, com os amiguinhos, as amiguinhas, as bonecas e as professoras. Não gostava muito de brincar com outras crianças. Preferia a companhia dos mais velhos, ou então a companhia do jardim, seu universo próprio onde realizava as suas experiências que alimentavam o seu sonho de ser tornar uma famosa cientista.

Não fora uma criança triste. De jeito nenhum. Havia muita alegria na sua solidão, havia um desencontro, um otimismo feio em fase de estirão. Os pais talvez ficassem incomodados com isso. E talvez por isso sua mãe a tratasse de uma maneira diferente. Lá em Maria da Graça, onde morava quando adolescente, Letícia começou a sair de seu jardim e ganhar o mundo que não cabia no seu Rio de Janeiro. Pão de Açucar, Copacabana, Cristo Redentor, tudo isso era meio estrangeiro para ela. Era o Rio que ela vivia na tv, mais verdadeiro que a Dom Hélder Câmara turbulenta e apressada, mais verdadeiro que a Penha e sua igreja. A sua perdição foi ficando cada vez mais no centro e já depois dos 20 voltava poucas vezes para a casa. Dormia no centro, na zona sul, além-ponte e se deixava ficar seduzida pelos novos amigos, pelas suas curiosidades, seus comentários e sua beleza. Quando voltava para Maria da Graça era pra jurar eterno amor, olhar desconsolada o passado, a promessa de vida, chorar com a mãe e com os seus irmãos. Ao sair de casa seu coração se enchia de alegria triste, sentimento que na época não conseguia dar nome e função. Deixava ele parado lá, sentindo, cutucando a cabeça, acalmando-a no mormaço do fim de verão carioca. Gostava de fazer o papel de passageira de ônibus distinguida e independente. Botava óculos escuros e abria o seu romance Júlia displicentemente para chocar a burguesia que ela já nem sabia identificar. Quando se aborrecia com o romance saltava as páginas, fazia observações, marcava, relacionava, citava e modificava passagens. Confessara a um namoradinho que um dia escreveria um romance como Júlia e que sim seria um sucesso e que neguinho nenhum ia falar mal dela.

Letícia deslumbrava os seus namoradinhos.

Tudo isso eu lembrava, conversava e ria com ela naquela mesa de bar, tão irreal, tão triste e melancólica. Tive medo, muito medo. O medo era tanto que quando pedimos a conta senti um peso no estômago, uma aflição, uma tonteira que me deixou assustado. Depois daquela mesa seria cada um por si, com as suas loucuras e seus apartamentos. Fiquei assustado, tentei pedir saideras sem sucesso. Fomos caminhando junto com o sol já baixo. Confessamos amores, alegrias e decepções mais uma vez, e tomamos o caminho para a faculdade onde havíamos nos conhecido. Caminhamos pelo campus relembrando os momentos que nos pareciam distantes e nos provocavam uma certa tristeza alegre, madura e vivida. Letícia estava menstruada naquele dia e precisava ir ao banheiro. Fiquei esperando do lado de fora conversando com ela numa faculdade vazia de sexta a noite, último horário. As raras figuras que apareciam eram calouros, seres perdidos, orientandos vagando com seus sonhos e certezas. De repente fui tomado por um excesso de ternura por todos esses seres admiráveis. Cheguei a chorar escancarando a minha crise para Letícia que ficava me consolando bêbada, à sua maneira linda e admirável. Como ela se punha maternal nesses momentos! Logo ela que desdenhava a maternidade! Fomos ver o luar, pois a lua estava cheia e bonita. Olhamos a paisagem da baía de Guanabara, as árvores e o centro da cidade ao longe. A alguns metros de nós se encerrava um congresso vazio de Filosofia e uma mesa de quitutes variados nos oferecia uma espécie de paraíso na terra. “Ah, a academia...” suspirou apaixonada Letícia agarrando meu braço e me puxando até os quitutes. Comemos horrores. Letícia não conhecia o molho agridoce e ficou extremamente deslumbrada com a mistura do salgado com o doce. “Bem-vinda ao mundo do agridoce” disse-lhe. Notei que ela gostou bastante dessa frase e ficou repetindo para melhor guardá-la na sua cabeça. Isso me emocionou. Comemos muito e saímos de lá satisfeito, barriga cheia, embriaguez leve e pesada de verão passando. Caminhamos até as barcas e zarpamos para o outro lado da baía que estava linda. Passamos pela praça altivos, belos, robustos e bem alimentados. Adiávamos nossa despedida disfarçadamente. Fingíamos não ver os ônibus que passavam.



Mas uma vez temi a sensação de fim de livro, de fim de romance, de penúltimas páginas, onde todo um mundo de possibilidade se encaminha inexoravelmente para a frieza de uma única folha, de um único parágrafo deixando o leitor desconsolado, à deriva, tendo que lidar com o vazio de tudo. Me senti o vazio de tudo e procurei explicar isso a Letícia. Ela pareceu não entender muito. Começávamos a entrar em sintonias diferentes e isso de alguma maneira me assustava e me aliviava. Nos apressamos e decidimos que dessa vez nos despediríamos. Trocamos carinhos, declarações de amor, encontros e desencontros. O ônibus dela chegou primeiro apontando lá praqueles cantos tristes do aterro. O meu chegou tempo depois. Coração pesado, tristeza triste, vontade de dormir, subi no ônibus passei pela roleta e encostei minha cabeça na janela sem forças inclusive para chorar e curtir a minha pieguice.

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