quinta-feira, novembro 12, 2009

Como construir uma eternidade duradoura

Cena imaginada: liga-se o rádio, finge-se gravação, exterior de dia estrangeiro, declama-se texto escrito em folha antiga e despudorada:


Deglutindo em tarde estrangeira um espanhol preso e arranhado na garganta, todas aquelas palavras magoadas, aqueles erres e esses enferrujados a poesia saía assim qual texto declamado por Cortazar, pátria ferida, vontade de passados, uma língua encostando-se à outra me causava graça, muita graça ver uma língua fantasiada de outra e escutar o seu sotaque assim tão leve assim tão de fino eu que só me prometi observar seu corpo de longe a sua beleza e nunca tocar no seu amor linda figura que construí para mim...

(olhando para o chão, pausas de mais de 30 segundos)

Mas o seu corpo sem o seu sorriso ainda assim sorria para mim e todo você me inspirava ternura de longe ternura de perto ternura humana de suas mãos levemente embriagadas pelo vinho pelo violão pelo bandoleón e pela voz assim mansa do tango feliz também estrangeiro declamando para ti versos ininteligíveis que insistias em repetir

E eu amando o seu amor desejando o teu desejo guiando-me pelo teu farol ia confirmando, só de longe preenchendo formulários intermináveis de vontade de pegar na tua mão de uma só vez e dizer que a vida era uma só e que o táxi lá fora nos levaria á felicidade prometida do meu quarto em noite fria de calefação ligada muitos livros para não serem abertos e bobagens para serem ditas

E você já botando na rádio bossinha nova, sonzinho barato, achando que sim aquilo era o som propício para a ocasião quando na verdade quem cantava mesmo eram os pingos gelados no lado de fora, melodia essa que precisa do silêncio e de seu toque para acontecer e se eu pudesse te escrever naquele momento te escreveria assim como você é belo, como você é distante, arredio, como você é você, interessantemente você, quanta alegria tão perto da gente, tão perto de tuas costas e de tua maneira alheia de rir...

E eu me conjugava em você eu me definia em ti a primeira e a segunda pessoa o meu verbo agia assim a partir do você, a partir do outro, do eu mentirosamente misturado lá no fundo, da completude incompleta de dois corpos que se pediram e se perderam no caminho sozinho do mistério de dois adeus antecipados, de dois olás, de duas dores que se somam se subtraem e se multiplicam

“saudade is the kind of feeling that I can’t explain” dizia você, falsamente você, carregando no sotaque inglês o cinismo daquela palavra atordoada e clichê que queríamos mais violentada, aberta, consumida, destruída pelas outras línguas.

Daquele quarto daquela noite daquele momento guardo a promessa de vida, a tentativa de eternidade, e o seu sorriso que irradiou toda a madrugada.

Eu, nesse agora estrangeiro, sou exilado do presente, arranho a tua língua, te falo, te declamo e te gaguejo também passando o tempo na janela levando você em boleros que pegam sim o avião e cruzam o atlântico e o canal da mancha repousando eternamente em seus ouvidos em suas costas, em sua mesma velha cidade, em seu mesmo velho outono em seu mesmo velho céu tão sincero

Cena não imaginada; exercício de estilo, poeta ator rasga papel dá play no radinho e estala o dedo nos 4 minutos da canção

“mi corazón es un eterno taller de escritura” – José Carlo, Boedo.

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