quarta-feira, maio 26, 2010

Remédio Anti-Proustiano

Ah meu querido. Não me digas isso assim de supetão que o que se enche de alegria é a minha casa ou o que resta dela, ou o que dela ficou para mim. Sabe, agora que faz sábado despreocupado eu me apresso em descer por aqueles mesmos corredores onde a saudade já é domada e o corrimão gelado é promessa de atrevimento, de vento da noite me chamando para a resposta que sei desnecessária.
Mas então, te vejo assim em forma de email, corpo do texto, atrevido, tempo passado, interesse, como vai você eu preciso saber da sua vida, etc... E eu de pijamas, fingindo solidão em minha úmida casa, carpete, gato e cheiro de vida. Eu, vitamina mais que pronta, banana escurecida, cigarros e descompromissos, via então na minha caixa de emails as letras que compunham o seu nome, letras que mesmo juntas ou separadas me causam certo fascínio.

Uso o verbo no presente porque sim, pois ainda me causa um prazer estético em ver o seu nome, bem pudera eu ter escrito no pretérito imperfeito e em tantos outros pretéritos, mas isso é literatura querido, perfeito ou imperfeito tanto faz e se deixo a realidade entrar no texto é para nada mais nada menos que subjugá-la, que calar a sua boca, calar o seu grito assim por um instante. E também porque, coitada, pobre realidade, faminta de sonhos, de canções e de lembranças, precisa também entrar em cena, vestir sua máscara, dançar a sua dança e cantar o seu canto.

Acho que é o tempo. Sim. O tempo. Grande influência. A umidade relativa do ar tudo isso. O tempo fotografa, fotografa muito bem, e quando mostra assim a mesma foto, a vontade do cíclico, do outono que sempre vem, tudo isso, tudo isso nos confunde e nos põe assim por alguns minutos, horas ou dias habitando os diversos mundos das diversas fotos que o tempo tirou.

Daí eu me lembrei do início da primavera e como isso era um espetáculo a parte, e de como as árvores se enchiam de verde, de como os dias longos e preguiçosos e o calor insosso nos enchia de vida prometida e vontade de andar mais e mais.

É que já faz muita noite agora. Já são passadas as duas da manhã e tenho as luzes apagadas, friozinho sem vento, musiquinha intimista. Um pouco diferente quando daquela vez em que o seu email me chegou e fiquei assim hesitando abrir ou não o seu email com os seus nomes, com as suas letras, aposto que com o que já escrevi até agora posso construir o teu nome, aposto que ele já se esconde por essas linhas, salta em diferentes parágrafos, escorrega em inusitados ditongos e encontros vocálicos, para ficar assim, escondidinho na perversidade do texto.

Na verdade abri email fóssil como quem abre carta que esqueceu de queimar em noite de purgação. Abri o email ainda lá, preso pelo tempo, sem cheiro de velho nem perfume. Somente o email, arquivo a uma tecla do delete, frio, impassível, branco e luminoso. Mas, que ternura! Que ternura. Lembrei de um ônibus apressado e de uma noite perdida no tempo.

Ah, como eu não queria o tempo, como eu não queria a memória, como queria antídoto, solução anti proustiana de escrever para o futuro de se escrever para o presente que nunca viu passado algum que não lembra que não dói memória nenhuma, seria sim, um mundo sem músicas repetidas, sem replays, refrões, novas e sempre novas frases musicais, letras e palavras usadas pela primeira e última vez, última e derradeira vez, ó babel, ó símbolos sagrados, ó paraíso.

Penso pausa para conversa na cozinha, o texto sem vergonha, saindo assim naturalmente como sai o ar que respiramos.

Queimo então decididamente tal email, deleto-o para o limbo cibernético onde textos e ideias se desfazem no ar e ficam assim a vagar pelo vento, pelas manhãs e pelos dias azuis.

Uma mentira. Como eu e você.

2 comentários:

Isadora P. disse...

Antídoto anti-Proustiano já!!
Sério, preciso seriamente! A madeleine te persegue pelo mundo virtual... e eu sendo acossada enquanto durmo. Nem sonhar eu posso mais!

Lindo o texto, querido! Adoro nomes que se esgueiram, sendo desvelados suavemente pela perversidade do texto.

E-mails incinerados de mentirinha me comovem. Faço isso de vez em quando.

Baphinho! e beijinho...

Anônimo disse...

Madeleine de cu é rola!!!